Friday, March 02, 2007

QUARTA-CRESCENTE

2007-02-21

QUARTA-CRESCENTE

Risoleta Pinto Pedro

“A voz inédita e implícita de todas as coisas do mar” Álvaro de Campos Um cais sobre um palco. Nevoeiro. E a voz, a inesperada voz. Ainda a ouço. Foi, não sei há quantos dias, foi, seguramente há umas semanas. Mas ainda a ouço, ainda lhe sinto as inflexões. Às vezes dou comigo a “inflexionar” como A VOZ. Com a voz? Ou a reconhecer pequenas inflexões suas em intervalos musicais de outras vozes. Como descrevê-la? A voz é de um actor? Ou de Álvaro de Campos? Ou de um marinheiro, deus marinho ou estivador? Comandante de um navio? Ou Fernando Pessoa?
O programa refere um nome: João Garcia Miguel, actor, o intérprete da “Ode Marítima” na Casa dos Dias da Água. Foi lá que ouvi a VOZ. Já acabou, fui ver o penúltimo espectáculo porque me convidaram, e para poder aconselhar os meus alunos. Porque isto de se aconselhar teatro aos alunos sem ver antes, é um enorme risco. Risco para o teatro, risco para um caso de amor ao teatro em que pode tornar-se uma ida ao teatro se o (a)caso for feliz. Tenho alunos que depois de terem visto algumas peças ficaram para sempre rendidos; vão ver seja o que for que eu lhes proponha, se for teatro. Daí a grande responsabilidade. Porque também pode acontecer o contrário.
Por isso, fui ver. Conheço o texto, conheço o contexto. Não sabia da voz. Foi a primeira surpresa. Ainda não se via o actor, já se ouvia a voz, e eu pensei: “Como é que é possível que eu nunca tenha ouvido esta voz?!”; porque a reconhecia; não de a ter ouvido, mas de a ter “reconhecido”. Poderão perguntar-me agora: “Mas é possível reconhecer uma voz que nunca se ouviu?”. Respondo-vos eu que sim. É possível reconhecer uma voz que nunca se ouviu. “Como?”. “Não sei.” Poderia convidar-vos a imaginarem um monólogo de uma hora e meia: a “Ode Marítima” do engenheiro Álvaro de Campos ao vivo e no nevoeiro; por isso, poucas cores. Movimentação sóbria, adequadamente espástica num ou noutro momento, expressão q.b., nunca de menos, nunca demais excepto quando o texto não permite que seja de outra maneira. E a voz. Sozinha, “no cais deserto”, olha “prò Indefinido”, que somos nós, e diz-nos o que vê: “um paquete entrando”, e descreve-se, sem se descrever: “Mas a minh'alma está com o que vejo menos.”. É a voz que o “trai”: ora cheia de “silêncios rumorosos”, ora “desabrochando… num ruído” paradoxalmente “cor de silêncios” … “Soa no acaso do rio” e através desta voz “Chamam por mim os mares.” É um chamamento, “esse grito tremendo de um contador de histórias marítimas que parece soar de dentro duma caverna cuja abóbada é o céu”.
Recordas-te, Voz?:
“ (Fingias sempre que era por uma escuna que chamavas, E dizias assim, pondo uma mão de cada lado da boca, Fazendo porta-voz das grandes mãos curtidas e escuras:
Ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-yyyy... Schooner ahò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò-ò - yyyy...)”
Já passaram alguns dias, mas ainda hoje “Escuto-te de aqui, agora” e desperta, ainda que alguns sons me cheguem como eco de “um ruído cego de arruaça”, ou de “volante a girar no centro do peito”, como um “clamoroso chamamento”, falando, chorando, gritando, interrogando, evocando, cantando, repetindo, silenciando.
Terminada a representação, apenas me restava “partir como voz”… “No silêncio comovido da minh'alma...”Afasto-me a cantar como um mar ao longe, mas “a canção é uma linha recta mal traçada dentro de mim...”, a canção é este misterioso magma alquímico criado por um texto, um corpo, um ambiente e uma voz. Se a tivesse ouvido, o engenheiro Álvaro de Campos teria composto uma ode qualquer, talvez uma Ode à Voz, quem sabe?, de pé e num jacto, como costumava escrever.
risoletapedro@netcabo.pt

http://risocordetejo.blogspot.com/

Thursday, February 22, 2007

Casa d'Os dias da Água, Janeiro de 2007



Video de Alexandre Coelho

Sunday, February 04, 2007

Cartaz do Expresso, 3 de Fevereiro de 2007

Ode Marítima
de Álvaro de Campos
com João Garcia Miguel

Casa d'Os Dias da Água, Lisboa, hoje e amanhã.


Depois de um clássico outro clássico, embora já não teatral.
Rei Lear, de William Shakespeare, foi o último texto que João Garcia Miguel trabalhou, mastigando-o como um hambúrguer e voltando a oferecê-lo sob o título Burgher King Lear. Fê-lo com Miguel Borges e Anton Skrzypiciel.

Sem personagens e acção, João Garcia Miguel sobe agora ao palco com as palavras de Álvaro de Campos, sob direcção dramaturgia e som de Alberto Lopes, em Ode Marítima.
Uma leitura "que progride até que o texto se revela como entidadecoisa independente e segura".

in Cartaz do Expresso, 3 de Fevereiro de 2007

Tuesday, January 30, 2007

in Diário Digital, 22-01-2007

Casa d´Os Dias da Água estreia «Ode Marítima» dia 25

O monólogo «Ode Marítima» estará em cena na Casa d´Os Dias da Água, em Lisboa, entre 25 de Janeiro e 4 de Fevereiro.

O actor João Miguel Garcia sobe ao palco de terça-feira a domingo, às 21:30 horas.
Encenada por Alberto Lopes, a peça não segue a regra do texto teatral, cabendo ao actor «dar corpo às palavras, revelando os seus sentidos».
Sem personagens e sem acção, «Ode Marítima» é um texto com uma estética implícita e intensa, misturando a relação entre ideia e expressão.

in Diário Digital, 22-01-2007

Cartaz do Expresso, 30 de Janeiro de 2007

Ode Marítima
de Álvaro de Campos
com João Garcia Miguel
Poema de Álvaro de Campos, a Ode Marítima não é propriamente um texto dramático, mas nem a falta de acção nem a ausência de personagens (apenas um sujeito enunciador) impedem que o texto constitua desafio para encenadores e actores.
Em exercícios dramatúrgicos, a ode já foi objecto de encenações que não deixaram de levar em conta a riqueza estética do texto, partindo dela para as variações originais de representação em palco.
Texto rico de potencialidades cénicas, a Ode Marítima divide-se em sete momentos, marcados entre si pelos movimentos do volante que gira dentro do sujeito poético.

in Cartaz do Expresso, 30 de Janeiro de 2007

Monday, January 15, 2007

Monday, December 04, 2006

Ode Marítima

Eia, que vida essa! essa era a vida, eia!


Na altura em que escreveu Ode Marítima, (por volta de 1916) Fernando Pessoa estava embrenhado numa especulação estética que marcaria decisivamente, não só a sua obra, mas também, de várias formas, a dos seus compagnons de route. Durante um curto período produziu esse processo vários -ismos que foram sucessivamente postulados, desenvolvidos e transformados em corpo constituinte de experiências rápidas ou heterónimos variadamente espessos e voláteis. Sucederam-se discussões, artigos e especulações em cujo contexto Apontamentos para uma Estética não-aristotélica (publicado em Athena, nº 3 e 4, Lisboa, Dezembro de 1924 e Janeiro de 1925)
é sem dúvida um texto-síntese, marcante e referencial.
Com o mundo mergulhado na I Guerra Mundial, Sá-Carneiro e Santa-Rita em Paris e Almada por aí, Pessoa era, em Lisboa, a antena que sintonizou e retransmitiu a pulsação do mundo, e garantiu que a modernidade - uma modernidade tão peculiar, afinal - passou por cá. Em 1916 ainda não havia coisas tão banais como são hoje o cinema ou a aviação comercial, ainda não tinha acontecido a revolução soviética nem, no nosso caso, o Estado Novo, mas estavam em curso acelerado as mudanças de paradigma que estiveram na base da vertigem em que se transformou o Século XX. Na verdade, o reequacionar dos fundamentos do homem na nova sociedade, a par com a enorme massa de conhecimento científico entretanto adquirido, foi o que esteve na origem da intensa e fértil discussão que ocupou a geração de artistas do princípio do Século XX não só em Lisboa, mas também em Paris, Roma, Madrid, Viena, Berlim, Moscovo...

A peculiaridade deste período de especulação estética consiste na projecção em obra do reequacionar dos fundamentos da contemporaneidade, projecção tão forte que, no caso de Pessoa, conduziu à existência de personalidades que defendessem e desenvolvessem tendências subtilmente diversas mas densamente autónomas. Antecipando visões conceptuais imprescindíveis à produção artística futura, a visão futurista partiu da revisão ou, melhor, actualização do reconhecimento da posição do indivíduo na sociedade para a dedução de postulados e teoremas para uma fundamentação estética, autónoma e independente, adequada aos homens dos novos tempos. É essa extraordinária capacidade de objectividade demonstrativa que, no caso de Pessoa, vem a gerar os heterónimos que, não só discutiam em profundidade a origem da arte poética, como se digladiavam na sua perfeição, fornecendo a Pessoa a matéria necessária para o exercício da crítica e da demonstração estética que sempre cultivou. Vista assim, a heteronimia pessoana poderia ser o testemunho de um processo de especulação estética extensa e disciplinada, praticada e publicada com confessada urgência na conjuntura das revistas de que era editor. Vista assim, a intensa produtividade que essa época conheceu é, também ela, expressão clara e patente de um intrínseco ímpeto modernista, é certo, mas, sobretudo, experimentador, objectivador.

para além da literatura

À luz dos Apontamentos... a Ode, mais do que um poema, é um texto canónico, pois resulta da aplicação de regras de composição e produz um sentido preciso, metafisicamente para além das palavras que o suportam. É certo que os Apontamentos... enquanto fundamento de uma teoria estética - que são sem o ser - poderiam ser longa e profundamente discutidos; mas é antes como manual prático que a sua síntese programática se manifesta, a um tempo poderosa e contemporânea. A ideia de uma estética não aristotélica é fundamental para que o conceito operacional de belo possa ser alargado, como é o caso nesta altura em que a integração conceptual da máquina no ecossistema humano engendra novas emoções estéticas e gera uma nova espécie de romantismo, um humanitarismo moderno, nem tísico nem linfático mas antes enérgico e rejubilante, cuja designação mais genérica é futurismo.

Como texto, Ode Marítima funda-se em processos de composição estruturados e pictóricos, como o fariam Santa-Rita e Amadeo, se tivessem escrito. Ode Marítima tem um relação absolutamente nova com a mimesis, com o modo de usar o mimético na criação artística, como tinha sido praticado até aí. Por isso consuma uma total rotura conceptual com a produção literária dos autores que antecederam Pessoa, como é o caso de Cesário Verde, para citar apenas um, evocado na própria Ode. Para além da literatura, a Ode Marítima é um texto intencionalmente estruturado, claro e dinâmico. Mais do que um poema, Ode Marítima é um ensaio sobre estética, uma estética da inteligência e da voz naquilo em que a voz é a palavra inteligível da inteligência-em-corpo; uma lógica de composição «modernista», desenvolvida disciplinada, metódica e aplicadamente . Há aqui, de forma clara e iniludível, uma teoria da composição poética independente e autónoma, que determina os elementos formais do poema. Em toda a composição da Ode, esses processos de composição estruturados antecipam uma lógica de montagem fílmica, ou musical, que extrapola extraordinariamente a própria retórica da construção poética, numa formulação estética que rompe o «processualismo» formal da escrita.

Há um processo fragmentário e síncrono na composição futurista (e claramente na que resulta da engenharia verbal de Álvaro de Campos), uma explosão dinâmica de sinais, de formas e de ritmos, que encontraremos mais tarde no cinema, das sequências montadas por Eisenstein nos filmes (eles também anteprojectos conceptuais) que produziu imediatamente após a revolução de 1917, ao vj-ing contemporâneo. O sentido global do texto resulta pois de um processo de montagem cinematográfico avant la lettre (que também faria lembrar Goddard, se quiséssemos insistir na comparação) fundado na permanente relativização de sentidos que cada novo bloco-ideia de texto introduz. Como num texto chinês composto por caracteres-ideias (ideogramas), cada novo bloco de sentido «afina» ou «recoloca» ou «torna precisa» a formação do sentido global do texto, criando assim uma «peça» intensamente dinâmica que se vai desdobrando em sentidos ao longo da sua duração. A partir de construções rítmicas, de saltos no tempo, de mudanças de velocidade, de sequências vertiginosas de opostas afinidades a Ode estala sonora na linha temporal dos seus sentidos.

uma construção cénica

Ode Marítima não é um texto dramático no sentido em que não tem uma acção que siga a regra do texto teatral. Nem personagens. Nem acção. Mas é um texto com uma estética implícita, precisa, quase geométrica, intensa, reveladora. Interessa, portanto, que nos interroguemos sobre como deduzir regras de composição e, também, sobre como abordar a construção de um nexo elocutório que, na sua simplicidade, represente o texto mais como um momento em que ele se produz como entidade-viva do que como um discurso normativo sobre a forma do texto poético. A associação íntima inteligênciavoz é um retomar da questão do próprio fundamento da linguagem, mas aqui desviada para o fundamento da estética, entendida num sentido lato, não restrito à ideia de forma visual. A Ode Marítima masteriza a relação entre ideia e expressão. A escolha de cada palavra, as sequências, os ritmos, as sonoridades - ou os resultados sónicos de tudo isso, que são o que realmente existe, o que realmente chega ao espectador, ou ouvinte, ou o-outro-que-assiste, a testemunha.

Um actor é um especialista em dar corpo às palavras, em revelar os seus sentidos. O seu trabalho começa na leitura, nas leituras, na maceração das palavras e dos seus sons e articulações e progride até que o texto se revela como entidade-coisa independente e segura. É este trabalho que nos faz acreditar que talvez toda esta construção possa prolongar-se numa existência oblíqua, num artefacto cénico igualmente fingidor, impreciso e imaterial.


Alberto Lopes
janeiro de 2007